sábado, 3 de abril de 2010

MEMÓRIAS DE TI, MARINA:


Eu tinha amarguras da vida, eu tinha falta de amor porque só um tive, só um me abraçou, só um morou no meu peito, no meu coração.

Era novo e amava a marina, uma mulher pura e linda, com um rosto perfeito, bem, mais do que perfeito, eu amei aquela cara e aquelas sardas, todas, uma a uma.
Conheci-a no eléctrico, numa daquelas "carroças" amarelas que por Lisboa andava a passear almas.
Tinha acabado de sair de casa, ainda trazia bocadinhos de massa folhada do croissant que comera de manhã, acompanhado com uma boa malga de leite quente, sabiam sempre tão bem os dois juntos, que delícia.
Tinha acabado de entrar no eléctrico quando a vi, lá estava ela, do lado oposto por onde eu entrara, encostada ao vidro a olhar a rua cheia.
Naquela altura aproximei-me dela e pedi-lhe lume, queria fumar o meu primeiro cigarro do dia, e do isqueiro me esquecera em casa, em cima do aparador do Hall de entrada.
Ela olhou-me pelo cu do olho, assim de lado, como quem olha um mendigo. Aí, eu ria-me para mim mesmo, para os meus botões.
De mão estendida ela. Na sua mão estava um isqueiro lindo - duppond de ouro, que eu adorei - peguei-lhe com alma e acendi o pequeno cigarro.
Logo agradeci - Obrigado!
Pedi.lhe o número de telefone, achei-a linda, de mais bonita rapariga não me lembrava eu.
Hesitante e pensativa, Marina reflectia. Passados segundos longos disse-mo a mim, só a mim, ao ouvido.
Logo memorizei, não precisei de papel e caneta, começava por: 21. Ainda não existiam móveis como os de hoje.
O dia passou-se e dela não me consegui esquecer.
Cheguei a casa, a arfar, depois de subir a longa escadaria do prédio, era quase de noite. Peguei no auscultador do meu telefone antigo cor de marfim e liguei-lhe.
Ela atendeu.
Estou?
Sou eu, pedi-te lume no eléctrico, e tu deste-me. Lembras-te?
Sim, claro que sim.
Ah então? Como estás? O dia correu bem?
Sim, correu - disse ela com uma voz envergonhada.
Queres tomar um café?
Talvez dê, sim, pode ser, logo se vê, parece-me bem, mas não sei se dá, mas há.
Como? Estou confuso, decide-te! - disse eu friamente.
Pronto pronto! Sim, vamos tomar café então amanhã. Falamos logo pode ser? Dá para ti?
Perfeito, desde que contigo esteja serve sempre.
Só uma coisa, como é que te chamas?
Rui - disse eu esperançado, e com razão.
Rui, que bonito...
Hehe, bem até amanhã então...
Sim até amanhã, beijinhos.
Adeus marina, boa noite por aí.

A conversa acabou ali.
Eu estava apaixonado, sem a conhecer. Apenas a conhecia de vista, nada sabia sobre o seu coração ou alma. Mas logo pensei: Calma... Amanhã descubro o resto, ou parte dele.

Eu amava marina.

No dia seguinte, levantei-me, tomei banho, vesti-me, comi, pus o meu melhor e mais caro perfume, cheirava tão bem, e eu bem o sabia, era muito vaidoso, nem havia questão possível, cheirava lindamente ponto final. Eu era óptimo, o rapaz mais atraente e cavalheiro da zona. Não era muito namoradeiro, bastava-me uma, e só uma me bastou.

O café correu tão bem, eu cheirava tão bem, fiquei a conhecê-la tão mal, que desgraça. Eu queria marcar outro café para conhecer o resto que faltava da minha paixoneta Marina.

Liguei, liguei, liguei. Ninguém atendia. Nada ouvia se não um profundo e denso: piiii, piii, pii. Cansei-me, logo desisti, larguei a puta do telefone e fui para a cozinha devorar cigarros caros e copos de licor, bem forte.
Ela não me atendeu o telefone, logo pensei: Esta tipa não me quer mais ver! Não gostou de mim. Estou fodido...
Fui dormir, com os pulmões a chorar de tanto fumo. Só tossia, terrível: cof cofff!

Na manhã seguinte lá saí eu de casa outra vez, sempre a ouvir o chiar da porta de madeira do meu prédio, era um zumbido que ficava a bater nas paredes da minha cabeça durante horas e minutos, pressistente, irritante, quase cortante.

Entrei no mesmo eléctrico de sempre, sempre á mesma hora, sempre, todos os dias, todas as manhãs, todas as entradas naquele amarelo, sempre as mesmas, incensáveis vezes, chatas mas incontornáveis vezes.

Olhei para o fundo, onde marina estava da primeira vez, não lá estava, fechei os olhos e pensei: Estou lixado, ela desistiu de mim, decididamente.

Mais um dia de trabalho e tabagismo de passou diante de meus olhos vermelhos de tanto fumo e letras. Cansados estavam, podre o meu coração batia.

Cheguei a casa, abri a porta, depois dos mesmos degraus de sempre, estafado, mais do que antes. Entrei. Olhei para baixo, cabisbaixo, ego em baixo, tudo em baixo, mesmo tudo, até uma pobre carta. Tinha escrito em letras gordas: Para o Rui.

De imediato peguei naquele envelope branco e vazio de esperança, abri-o e nele estava deitado um papel comprido, todo dobradinho em forma de quadradinho.

O papel era longo e logo achei: É da marina! Tem de ser da marina! - disse-o com toda a certeza do mundo e aos gritos, até a vizinha ouviu, assustada a velha da frente veio á porta, rapidamente fechei a minha, não tinha a mínima paciência para a chata, cusca e incansável velha, porra...

Desdobrei o cuidadosamente dobrado papel, dizia: FUI-ME EMBORA, FUGI DAQUI, NÃO FUGI DE TI, ACHO QUE TE AMO, Marina.

Era assim que as letras se mostravam naquele papel, fiquei incrédulo, o coração caiu-me nas mãos, caiu-me nas mãos vindas de rua, o coração que eu queria dar a Marina estava-me nas mãos, o meu próprio coração.
Chorei, muito, imenso, fazia um rio no rosto, as lágrimas acumulavam-se no meu peito encharcando a gola da camisola de caxemira que eu vestia, era verde, linda.

Eu estava desesperado, perdido, logo percebi que tinha perdido a rapariga que seria a mulher da minha vida e da puta da minha morte...

E aqui estou hoje, sozinho com setenta e dois anos de idade, com muitas rugas sem nenhuma história de amor para além desta para contar. Estou sozinho com esta tanta idade, sem amor, hoje com tantas rugas, com tanto amor para dar, sem nenhum amor ter.

Foi só uma vez, só amei uma vez, nem sexo fiz, sou infeliz, aqui vou morrer, neste cadeirão que abana, para a frente e para trás, em frente ao televisor, a comer biscoitos de manteiga.

Não quero mais amar até morrer, e mais nada tenho para contar.

Amem muito meus jovens, chorem muito, dêem o vosso coração a quem puderem, a quem o merecer, a quem vos amar do fundo do amor.

Francisco H. M.

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